O MEU NOVO APARTAMENTO É AQUI AO LADO.
COM PACIÊNCIA E TEMPO DISPONÍVEL PODEM VISITÁ-LO.
POR ORA AINDA NÃO ESTÁ MUITO ARRUMADO.
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ATÉ
Minha atenção foi chamada por piar aflitivo.
No terraço, em revoada, volteavam os pardais.
Falavam todos à uma e a causa era patente.
Por gato preto ou pardo, um deles fora destroçado, restando a cabeça com dois olhos sem expressão.
Um, que pelo susto passara e tremia de emoção, pipilava a sua história:
--Estávamos na brincadeira, na mira do namoro, e o malvado do gatão, duma só sapatada, apanhou-o mesmo em vôo.
E todos pranteavam em chilreado alarido, até que um deles questionou:
--- Será que Deus existe ?
A insólita pergunta fez tombar a assembleia em reflexão profunda.
Caiu ali o remanso, por quanto tempo não sei e de nada serviria que as bitolas são diferentes.
A pergunta embaraçosa sai resposta duvidosa e foi aí que dei graças por no paleio não ter entrado.
Decorrido o embaraço, lá rompeu outro piupiu:
-- Ora, se existisse onde estava ele quando o gato aqui passou ?
Retrucou o mais velho em tom pausado, era doutra geração e muito havia voado:
-- Não existe podem crer ! E até ouvi dizer que é invenção dos humanos para tão sós não se sentirem.
Enfim, não quiz ouvir mais destas coisas de pardais, pois naquela madrugada, ainda o orvalho chorava, outra conversa escutara dum grupinho de lagartas. E o mote semelhante, com queixas da passarada-
Tudo à volta do umbigo e da área circundante, sempre à espera do milagre, esquecem a morte e o perigo, seu companheiro e mandante.
Mas ainda faço mais, deixo aqui o retrato destes três personagens, tão diferentes, tão iguais.
E aprendi o conceito:
Inventado por nós para não nos sentirmos sós !
Gostei...
Uma luz assim acesa, com quem pudesse falar, afastaria a tristeza duma noite sem luar...
Fui cativado, como a raposa, e à lembrança me tem vindo a florinha amarela.
Hoje mesmo fui ao sitio, mais o aperto que a ideia fatalista e o preságio me emprestavam.
A confirmaçâo logo tive. O seu sitio abandonado.
Alguém a colheu, ou pisou, e, nesta última hipótese, o vento que a trouxe a levou.
Tenho menos! Mas algo dela me ficou e, nos picos do silèncio, chamo-a ao meu coração e não ficarei tão só.
Desculpem lá o tamanho e a euforia.
É que algures dali saiu em tempos a minha nave em passeio espacial de maravilha, tendo, por sorte ou azar, esbarrado neste planeta prisão, onde e incompreensivelmente, ficou retida.
Desculpem, reitero, o êxtase acelera-me e dá-me ganas de mergulhar, sem saber voar, sem medo, sem servidões, livre, na tentativa de regressar ao meu sítio.
O quê ? O conhecimento e a ciência dizem-nos que muitas daquelas estrelas já não existem ?
Pode lá ! Eu estou a vê-las! Ou, por aqui, já nem posso acreditar no que vejo?
Para que servem esses tais de ciência e conhecimento?
Será para aditar angustia e cortar cerce a esperança de regresso?
Será que a minha estrela está na lista das extintas, sendo em vão o retorno, deixando-me no espaço para a eternidade sem acolhimento?
Ciência e conhecimento eu vos declaro culpados.
Assassinos confessos dos meus sonhos, minhas ilusões!
Alguém me perguntou quantos anos tinha.
Após alguma reflexão e lembrando Galileu, respondi não saber, talvez poucos.
Li o espanto no rosto do meu interlocutor e esclareci:
Sim, os que terei serão os que me restam, sendo úteis se deles fizer bom uso e a soberana natureza o permitir.
Os outros já os perdi, são virtuais, mero registo de memória.
(...
As minhas ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna de oiro
No mar da vida, assim... uma por uma...
F.E.
Caça. Uma das paixões do Januário
Era também muito crente, coisa que não casava.
Esses seus olhares para o alto, implicariam obviamente bondade e piedade, virtudes não compatíveis na matança por prazer.
Mas enfim, a cada qual sua moral e lá ia usufruindo do seu gozo.
O sonho, a meta, era a caça grossa.
E, do tanto sonhar ao realizar, foi uma penada.
Gastou o que tinha e não tinha e lá embarcou.
Dizimou. Sem dó nem piedade e por mera e vã glória.
E dizimou o que na gana lhe deu, até ao encontro com o leão.
Ali, em frente ao poder do rei, os nervos não aguentaram, largou armas e bagagem e, como o povo diz, cavou.
Correu, correu e o rei no seu encalço.
Âs tantas esparramou-se. Fechou os olhos perdido e, esquecida a sua frieza na matança, levantou os braços ao céu, soluçando e rogando:
Senhor, fazei que o animal seja crente.
A selva aquietou-se. Ainda a medo, abriu os olhos e o milagre estava à vista. A grande fera de rojo, patas dianteiras justapostas, erguia a grande cabeça enjubada e balbuciava.
Dissipado o pânico, sorriu o Januário. Afinal fora atendido !
Não era caso para jubilo e disso ficaria certo se os animais entendesse.
O leão orava sim, agradecia ao senhor aquela magnifica refeição.
Crente, mas também não piedoso.
Não surge fácil a tarefa de Deus, em face do contraditório dos rogos, tornando-se evidente que o sol quando nasce não é para todos.
O puto parece preocupado, agressivo ou chateado ? Não
Para o futuro garantir, apenas presta atenção ao jornal que tem na mão.
Na escola já pouco aprende, basta ler ou soletrar e até cem saber contar
No desenho é a estrelinha e depois é acertar.
Lá em casa ? É mais do mesmo.
A mãe, o pai, o irmão e pensaram, vejam bem, dar ao gato essa instrução (qu’ele até vai arranhando !).
Grandes descobridores, antigos donos dos mares e de meio mundo também, ficou daí a mania que o trabalho é fantasia e coisa que não convém.
E assim a navegar, dou por certo irmos ao fundo.
Mas já sendo campeões, pois com a França lideramos o gasto no euromilhões, não interessa mais a crise, se há dinheiro para comer, nem tão pouco para vestir, o que interessa, podem crer:
É apostar, apostar,
alguém há-de pagar
e o que der é para curtir
Da minha odisseia, mesmo quem já foi chateado, apenas faz pálida ideia.
Tudo começou naquele fim de dia de Outono... com licença, não vou citar ... a brisa, o pôr do sol e outros adereços, vou directo ao que interessa.
Pelas 20 horas, toca o telefone e atendo.
Uma delicada voz de mulher pede-me para chamar a Joana.
Por bem ou por mal, estava só, e disso fiz informação à senhora que se desculpou e foi-se.
Pelas nove, novo toque.
Era um puto que me pedia para chamar a Tia Joana.
Ligeiramente intrigado, esclareci o engano.
Uma hora mais tarde era um sujeito de grossa voz.
Pedia para chamar a filha, a Joana.
A minha panela que em lume branco já estava, passou à fervura e a tampa saltou.
Depois de alguma troca de mimos o sujeito mandou-me à merda.
Eu desliguei... e não fui.
Não digo mais nada.
A partir daí e precisamente de hora a hora todos queriam falar com a Joana.
Não discuti mais.
Às oito da manhã, completamente derreado, olhos encovados e a bocejar, resolvi ir encostar a cabeça na palha um pouco em sobressalto.
De solavanco em solavanco lá desci o penhasco do sono e entreguei-me profundamente...
Estava nesse vale da paz e um som estridente e repetido, acordou-me.
Era a campainha da porta e claro, eram nove horas.
Vesti o roupão e fui abrir.
Vinha ensonado e fiquei extasiado. Deparei com um sonho de mulher, leve, sem pinturas ou mascaras, irradiando paz e frescura, só faltando abrir-lhe a cabeça para ver se também seria assim por dentro.
Olhou-me sorridente e disse:
Sou a Joana, a sua nova vizinha, peço desculpa de incomodar tão cedo. Vinha ver se deixaram algum recado para mim.
Sem saber o que fazer, mandei entrar.
Ai, esta memória, como relembrei isso agora ? Tantos anos passaram e... raios, lá está o telefone outra vez:
Joana, atende aí!
É claro que os preconceituosos estão já a pensar:
“melhor teria sido que ele fosse à merda como o mandaram”
Mas não, enganam-se. E além disso poupamos uma renda de casa.
AMAR É CONTIGO ESTAR
ESQUECER QUE SOMOS DOIS
ESTAR SÓ E TER
Desta vez o sujeito que coabita comigo saiu da linha.
Daí resultará uma briga e tanto.
De resto, e consultando os meus arquivos, a harmonia, se existiu, limitou-se à infância, tempo em que já mostrava aquele seu jeito de ser.
Ultrapassada essa época própria da inocente candura, iniciou o seu rosário de acusações à minha forma de estar, imputando-me o facto de nunca termos sido meninos de verdade.
NO MARAVILHOSO REINO DO FAZ DE CONTA
NEM SEMPRE VENCEM OS BONS
Reza a lenda que há muitos, muitos séculos, um velho Génio se passeava na Galáxia, voando no seu tapete e resolveu sacudi-lo. Duas ou três palmadas e salpicou aquela zona de inúmeras partículas de poeira, seguindo o seu caminho sem se aperceber do caos que havia gerado.
Por ali passou outro Génio que andava sempre a descobrir coisas e até usava uns aparelhos, depois chamados telescópios. Notando que as partículas de pó tinham uma cabeça, tronco e membros, logo ali resolveu chamá-las de humanóides, mais tarde humanos (para facilitar), começando a declarar aos quatro ventos que descobrira a HUMANIDADE.
Aquilo não era coisa de somenos e ao examinar as cabeças em pormenor, verificou que, muito embora algumas fossem ocas ou com recheio sem grande significado, quase todas incluíam um pequeno planeta e esse sim fervilhando de complicada vida. Era uma espécie de labirinto onde coabitavam milhares de pequenos seres, parecendo gnomos e com nomes engraçados (BONDADE, MALDADE, INVEJA, ÓDIO, COBIÇA, TOLERÂNCIA, entre muitos, mais ou menos importantes, e me perdoem não os descrever mas para tal é insuficiente o tempo de vida que me resta ).
Cada criatura era conhecida pela característica mais marcante da sua personalidade e é bom de entender que, existindo tanta acção e reacção, o equilíbrio só seria obtido por alguém com mão de ferro e de facto assim sucedia.
A rainha CONSCIÊNCIA e a sua conselheira RAZÃO, lá iam mantendo estável o nível da SAÚDE MENTAL, controlando aquele povo um pouco desordenado, indisciplinado e desobediente.
Claro que havia um Rei, o INCONSCIENTE! Muito metido consigo, poucos se lembravam de o ter visto, sendo certo que só surgia em determinadas ocasiões e, mesmo nessas, não para agrado de todos.
Dizia-se passar o seu tempo a organizar extensos arquivos secretos, ajudado pelo SONHO, personagem estranho e que aproveitava as ocasiões em que a Rainha mandava o pagem SONO apagar as luzes e declarar descanso geral, para deambular nos labirintos, acompanhado de brincalhonas, principalmente a FANTASIA, e servindo-se abusivamente do arquivo secreto.
A Rainha que também tinha os seus agentes, sabia destas escapadelas mas fechava os olhos, visto que alguns PSIQUES (já vamos saber quem eram) a haviam convencido que o SONHO até seria benéfico para a saúde.
Porém, ladino e descuidado que era o SONHO, perdia por vezes o controlo das brincadeiras, logo surgindo o terrível PESADELO, esse sim provocando alarme geral e despertando todo o planeta.
A vida prosseguiria de forma razoável no reino da MENTE, se numa densa floresta não vivessem um mau bruxo, o SOFRIMENTO, amigo, unha com carne, de duas fadas más, a DOR e a MORTE.
Malévolos que eram e sabendo das constantes intervenções da CULPA e do REMORSO, enviavam os seus emissários, TERROR , PÂNICO, DOENÇA, LOUCURA e SUICIDIO, aproveitando a fragilidade de muitas daquelas criaturas para se intrometerem no seu seio. Alguns estoicamente suportavam os seus ataques, SERENIDADE, HUMILDADE, ACEITAÇÃO entre outros. Muitos mais como DESESPERO, ANGUSTIA, SOLIDÃO, LUTO, por menor discernimento, debilitavam-se facilmente e com frequência sucumbiam. Nessa confusão alguns estavam doentes sem saber e só os outros o percebiam, altura para a insidiosa DÚVIDA questionar a sua própria sanidade.
Para obstar a estas dificuldades e tentar manter a saúde da MENTE em níveis sofríveis, resolveu a Rainha criar um grupo de trabalho constituído por alguns supostamente ainda não doentes, a quem mandou ministrar ensino especial e chamou de PSIQUES. A tarefa destes especialistas da MENTE era árdua e o êxito nem sempre assegurado, dependendo da fixação que os doentes tinham nos bruxos e nas fadas e na sua capacidade de lhes resistir. Em alguns casos tratavam deles só com conversas, tentando, sem o dar a perceber, encontrassem em si mesmo as qualidades ideais para evitar a ruptura, noutros tinham de recorrer a medicinas que, não garantindo a cura absoluta, amenizavam a forma como o SOFRIMENTO, a DOR, a MORTE e as diatribes dos seus emissários eram percebidos.
Certos destes PSIQUES tinham até autorização especial da Rainha para convocar o INCONSCIENTE rei, e, quando o conseguiam, apertavam com ele de forma a investigarem alguns dos seus arquivos mais secretos e, por vezes, obtinham resultados satisfatórios.
Em desespero, e lançando mão de todos os recursos, criou também a Rainha outro grupo os VOLUNTÁRIOS que, embora não fossem técnicos e até não percebessem muito bem como o conseguiam, lá iam ajudando algumas das criaturas tão-somente porque as aceitavam como eram.
Não quero deixar de fazer referência a uma distinta senhora, a AUTO-ESTIMA, aia da Rainha. Todos os cronistas são unanimes em afirmar que por vezes irradiava tal luz que a MENTE parecia quase uma estrela o que era benéfico para a saúde mental.
Continuaria o meu relato, fazendo até alguns desenhos para melhor compreensão! Estou contudo condicionado no espaço/tempo e já me fazem sinal para concluir. O estilo clássico não vence neste caso e só poderei escrever: “e viveram muito infelizes para sempre...”, epílogo confirmado por notícias do século trinta e um.
Até à próxima! Vão ali com ar risonho a ESPERANÇA e a FELICIDADE que vou tentar acompanhar...
Haver gente interessada na vida de quem não conhece, é estranho, mas acontece.
Se lhes caímos na alçada, vamos ficar controlados, horários, emprego, refeições, tempo de estar deitados.
Coisas de cama, então, é o delirio total. Gozam de tal maneira que lhes pode fazer mal.
Escutas sofisticadas, perseguições animadas.
Espreitam pela fechadura se a porta não está aberta.
Para que lhes serve ? Não sei. É doença pela certa.
Talvez nuns a frustação de não saber imitar.
Noutros a distração, em vez d'irem trabalhar.
Alguns ainda talvez para terem de contar.
Para todos é de certo estranha forma de gozar.
Este trabalho de espia, pese embora degradante, admissivel seria se lhes garantisse o pão. Mas não !
Impossiveis de evitar, deixemos de lhes ligar.
..
Não me recordo o que comi ontem !
A todos acontece.
Mas também estamos aqui e, num piscar de olhos, estamos lá, onde quer que seja, a gozar ou a chorar momentos antes vividos. Não há tempos, não há distancias. Nem há agencia de viagens que garanta este serviço.
Pois. É uma capacidade maravilha de que dispomos e alguns menosprezam.
Os aviões também tem, suponho menos sofisticada e não tanto sigilosa. Pode ser lida por estranhos na descoberta dos mistérios dos acidentes.
Para nós é uma caixinha onde vamos ciosamente arquivando o filme da nossa vida, sucessos e insucessos, alegrias e tristezas, dor e prazer. Guarda o bom e o mau e estamos a nu.
Cada um tem a sua. Ordena e gere o arquivo como melhor entende.
Gosto da minha. Palavra ! Estou frequentemente a espreitar, com o cuidado devido, não vá qualquer rabanada de vento prejudicar a arrumação.
Tenho uma memória mais espacial do que temporal.
Traduzindo: a cena para mim é ali mesmo viva e vivida, não interessando o quando mas onde.
Em momentos menos criativos em que o mundo resolve colocar os pés nas nossas costas e a solução mais óbvia é sentar ao canto e deixar passar a crise, a caixinha e o seu conteúdo são bastante úteis e cooperantes.
Por crer que a memória é um tesouro lhes peço que evitem perdê-la.
Poderia restar o consolo dela servir a alguém. Mas não, é pessoal e intransmissível. Se alguém a encontrar, de nada lhe servirá..
Além disso é essencial. É a nossa identidade, o nosso passado.
Virtual que seja, não há outra pessoa capaz de o reconstituir, nem por aproximação.
Existe outro perigo na perca.
Há por aí uns sábios doutores que jamais acreditam que tenhamos perdido a memória por descuido. Dizem ser doença e para a identificar logo aplicam aqueles palavrões que de modo algum desejamos nos digam respeito. Senilidade... ou pior, senilidade precoce ou ainda outros e além disso estrangeiros.
Bem... Se isto serviu de algo, contente eu fico, e, sendo já passado, vou colocar o texto na caixinha com a nota de favoritos.
Será bom sinal que se vão lembrando de mim...
É habitual.
Acontece bastas vezes em baptizado, casamento ou funeral à conversa se meterem pessoas que nunca vimos e ali estão de circunstancia.
Este tipo de intruso, no seio de tanta gente, nem notado seria se não fora tanto abuso.
Fala pelos cotovelos, do que sabe e que não sabe, e não se dá ao recato, conta histórias sem interesse, e por vezes anedotas, sem respeito pelo acto.
SEM PRECONCEITO
Continuaria enrolado no sonho, não fora aquela batida persistente. Abri um olho e accionei os outros sentidos.
Levei tempo a rever-me. Fazia fresco, era manhã. Enrolado continuava porém no cobertor, de que perdera o hábito naqueles últimos meses de verão.
O ruído continuava como cão a pedir guarida. Teve de ser. Separei-me da manta e, em pelota, assomei à janela. Tudo estava explicado. O inverno estava às portas da cidade e para reconhecimento mandara avançar os vanguardistas. Ali estava o Outono e os inseparáveis ajudantes: o chuvisco e o vento ligeiro. As folhas secas, apanhadas de surpresa, esvoaçavam aflitas, sem destino, sacudidas do torpor morno dos últimos dias de estio.
Aqueles arautos avisavam os humanos da cessação quase imediata da mordomia da estação quente. Tempo de trocar de fardamentos, o que me levou de imediato à relação próxima dos meus pés e das sandálias. Que seria delas ? Já me compadecia a interrupção daqueles amores.
Não riam. Recorda-me bem aquele dia de inicio de verão quando estaquei junto à pequena montra da sapataria na intenção de encontrar algo mais leve do que as botas de inverno. E elas, as sandálias, lá estavam, num cantinho, pela humildade ressaltando entre outras, sem arrebiques, simples, pele de mel, macias, a prometer caricias de que os meus pés andavam ávidos e a lançar-lhes olhares gulosos a que eles não foram insensíveis.
Antevi problemas, tentei arredar-me na fuga ao compromisso. Todavia eles, por si, encaminharam-me à entrada da pequena loja. Daí a enlaçarem-se, foi um tiro. Não sei dizer de quem foi a iniciativa, fundiram-se de tal forma, dois em um, só possível num amor de primeira vista. Cativaram-se e aceito. Elas tinham tudo o que uns pés cansados do percurso podiam desejar, simultaneamente macias e firmes, delicadas mas justas, aceitando as diferenças, completando-se.
Nem sequer discuti na minha plena incapacidade de os separar. Paguei, deixei as velhas botas e eles vieram felizes na experiência daquele amplexo, estudando-se e entregando-se.
A partir daí. Que posso eu dizer ? Foi a loucura ! Não se desligaram mais, excepção a banhos e dormir que aí opus felina resistência.
Porém de noite os pés viviam agitados pela breve separação e elas, junto à cama, ansiavam pelo raiar do dia e por aquele que era o meu hábito de ir ver o sol a vestir-se. Novas andanças, novas descobertas, novos enleios.
Como vou eu agora convence-los que tudo acabou ?
Enfim, terá de ser, já venho.
Estou de volta. E venho perplexo... A situação foi aceite, compreenderam que nada é eterno, que foram privilegiados porque tiveram e isso nunca estará perdido e acrescentaram um pedido. Gostariam num dia ou outro de sol, sempre que possível, unirem-se relembrando aquele verão jamais esquecido. Doçura e amor. Lindo de doer.
E SE OS HOMENS CONSEGUISSEM SER ASSIM ?
Não tenhamos dúvidas
se fomos crianças
se fomos amados
foi com intenção ternurenta que nos embalaram, contando e recontando, entre outras, a história do lobo mau e do capuchinho vermelho, mergulhando a nossa candura de então nesse mundo do faz de conta.
Aí nessa profundeza onde, separarados os bons dos maus, se esvaziam os espaços intermédios. Mais ou menos bom ou mau não existiam.
Vamos crescendo nesse encanto, sem nos apercebermos do seu desencanto.
É óbvio que ainda hoje, na vida real, há por aí "lobos" a comer o capuchinho e a avózinha e, se apetite lhes restar, ainda se aproveitam do cabaz da merenda.
O verdadeiro sacrificado, no meio do turbilhão, parece ter sido o lobo.
Viu a sua reputação arrastada na lama, não que isso lhe importe por certo, quando no fim apenas cumpre o seu fado e o lugar a ele destinado nesta prisão enorme que é o nosso planeta.
Mais um a sofrer do preconceito.
Vamos fazer amor...
Coisa vulgar de ouvir, no recato de qualquer conversa intima, no autocarro, em bares, cafés e discotecas ou na invasão sistemática com que o pequeno ecrã castiga a nossa casa.
E aprofundando a pesquisa, mesmo sem recurso ao filme porno, podemos citar algumas frases tais como:
Fiz amor
Entre uma infinidade de outras, e até por vezes na cama.
A moral que tirei da história:
O amor fabrica-se, sendo apenas necessário alguma imaginação e a presença mínima de dois artífices quiçá bastando um se de génio se tratar.
Ora isto causa-me grande confusão.
Havia arrumado na minha gaveta dos conceitos, quase conclusivos, a aceitação de que o amor e o sexo pouco tem a ver um com outro E se, por casualidade, amarmos verdadeiramente alguém com quem temos sexo, isso terá de ressaltar da relação no período que decorra entre dois orgasmos não seguidos. E aqui lhes digo, se o resultado é positivo, então sim é a excepção em que o amor e sexo se aliam.
Não se faz amor, deixamos fluir o amor, somos dois em um.
Na verdade teremos de aceitar que o sexo é servidão imposta pela mãe natureza que astuciosamente criou esse impulso em todos os animais (com o estimulo do prazer) como garante da renovação. Maldosamente vamos dando a volta e usamos os contraceptivos. Como não queremos prescindir do prazer e simultaneamente evitar a vileza, mascaramos então o acto, praticando-o abusivamente, muitas vezes, em nome do amor.
Amor é outra coisa. O amor é dádiva. Nasce nos lagos profundos da nossa alma e curiosamente não se fabrica. Ou se tem, ou se é pobre!
Não quero confundir amor com sexo. Vou manter os meus conceitos até porque também amo algumas arvores e não me vejo a fornicar qualquer delas.
E que isto não seja preconceito !
Na paragem do autocarro, à minha frente e conversando, aguardavam um homem e uma mulher.
Ele, rapaz da minha idade, centenário que estou quase.
Em abono da verdade, fintando falsas modéstias, na aparência lhe ganhava.
PRECONCEITOS ? SIM, CONFESSO: eu tenho...
E não me consola saber que o verbo se conjuga por inteiro:
Tu tens, ele tem e também são verdadeiros os plurais.
Humildade, aceitação da diferença, evitam a fácil critica.
Nesse pisar descalço, alguns se irão perdendo, vindo outros por acréscimo..
E o segredo será conseguir que as percas superem os ganhos